(re)nascer

12:20:00


As gotas de orvalho escorrem pelas pétalas de cada flor que preenche o meu pequeno grande jardim. As nuvens, desenhadas a tons cinzentos, são rasgadas pelos raios de sol que se reflectem na minha folha de papel. Os vastos campos estão carregados de girassoís, a força do vento leva o mar a esbater na areia. Os pequenos insectos caminham pelo passeio, o pequeno bando de pombas brancas baila. A cadeira chia, baixinho. O  pescoço estala, o meu doce e marcado pescoço. A respiração fluí. As cordas da guitarra vibram. O coração vai palpitando. O relógio vai marcando a pulsação do tempo. O cheiro do pequeno incenso banha o quarto. Mais do que é estupidamente normal, tudo é caracterizado pela sua presença. Que deleite! É tão magnífico, tão animal sentir este tal de arroubo cada vez que o meu olhar dança em volta do mundo e o vê a ele! Na verdade, o que mais me fascina é o seu jeito ténue, suave e carinhoso de ser. A sua maneira característica de fazer com que tudo se torne inesperado. Parece que ele perscruta, em segredo, conhecer-me mais e mais antes de agir. E eu até que gosto disso. Gosto que ele se importe, pois nunca ninguém realmente o fez antes. Nunca ninguém procurou conhecer-me, de verdade. Assim, vou escrevendo.. Escrevendo para ele, segredando um pouco de mim à folha de papel que o permitirá conhecer-me cada vez mais, tal como ele deseja. Pois os seus desejos são ordens, e as suas ordens desejos. 
 Cantarolando, então, baixinho, as notas que suavemente a minha voz escoa, vão-se unindo com a melodia que a guitarra sussurra. E, nesta manhã de Primavera, procuro marcar a tinta numa folha de papel, o pouco de mim que ele ainda desconhece-se. Começo por esculpir a personalidade, e a seguir moldo o feitio. Mais tarde, pinto a tinta acrílica os sonhos, e a lápis de cera as motivações. Com tantas cores, forma-se um arco-íris... E eu nasço. Transcrita, transparente, vulnerável e nua numa folha de papel. Traçada por palavras, ou até desenhos, que são cantadas e cantados, gritadas e gritados por essa tal caneta, por essa tal de tinta preta. 
Por fim, termino com mais um pedaço meu, e beijo a folha. Peço à pomba mais branca e suave do meu pequeno grande jardim que a leve até ele. Assim, ele saberá o quão doce os meus lábios são. E quem sou eu? O que diz a carta? O que dizem as palavras? Dizem, sem tirar nem por, que sou o arco-íris que no dias mais complicados, aparece para lhe alegrar o dia.
E lá vai ela. Estou a estudá-la com o olhar, pela minha pequena janela. Já lá vai longe, a minha moça dos recados. Aguardo. Ele responderá. Ele quererá saber. Porque eu quero. E nós, seres cismáticos, acreditamos que dar amor é sinónimo de receber. E, quando nos é tirado o tapete dos pés, desiludidos ficamos, quase como se fosse uma obrigação que aquela pessoa nos tivesse tão em conta quanto nós a temos a ela. E é errado. Ser assim. Pensar assim. Mas é algo que nos ultrapassa. Que me ultrapassa e transborda. Se soubesse o que sei hoje... Teria eu deixado que ele demandasse o meu cerne? Teria eu deixado que me possuí-se a alma e arrebata-se o consciente? À minha volta, as paredes murmuram que não me deveria deixar afectar tanto. Que quando menos esperar, tudo passará, como uma tarde chuvosa, num suposto dia de Primavera. Mas agora... Agora está frio. O vento, esse corta-me a respiração. Os raios de sol não conseguem mais raiar, ou traçar túneis pelas nuvens cinzentas e sombrias. As paredes dizem que assim é a vida. Que o arco-íris só vem, se a chuva vier. Então aqui fico, aguardando. Desta vez, não espero por ele. Não espero por ninguém. Espero por mim mesma. E espero que, nas profundezas dos meus maiores desejos e segredos, que eu (re)nasça. Um verdadeiro arco-íris. Nua, transparente... Como o estou a ser, agora. 

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